Na varanda


Fazia dois anos, exatamente naquele dia. Na verdade, foi por acaso que descobriu que tanto tempo já se passara desde o exato dia que deixou o inferno. Sr. Ferdinando sempre foi “reclamão”, do tipo rabugento, que as pessoas tinham o senso de desviar quando davam de cara com aquele ser visivelmente amargo na calçada. Ele era do tipo que resmungava, xingava e levantava a mão para quem ousasse desafiá-lo ao cruzar seu olhar.

Mas esse jeitão dele mudou desde aqueles tempos. O inferno a que se referia, tratava-se do hospital público em que ficou internado por longos 3 meses.

Em sua varanda, onde contemplava o gramado, lembrava-se daquela época com um sentimento que não sabia decifrar. 3 meses. Foram os dias mais compridos e tediosos de toda sua vida. Ele, que sempre reclamava tanto da vida que tinha, todo santo dia, teve de se conformar em não dizer uma única só palavra naquele lugar. Mal podia se mexer.

Quem o conhecia, certamente acharia estranho se o visse naquelas condições, se de fato alguém tivesse se importado em visitá-lo. As enfermeiras que passavam pela cama dele, achavam que a atitude era considerável por conta do derrame que tivera dias antes. Para elas, ele era só mais um número na cama 22.

Turbilhões de lembranças corriam por sua mente, passando como filme antigo. Ele, naquelas condições, fraco e impotente, não tinha ninguém para segurar sua mão, dizer que tudo ficaria bem e que as coisas voltariam a ser como eram.

Depois de receber alta, seus movimentos já não eram os mesmos. Ele nunca voltou ao seu estado normal. Além de uma das partes ficarem bem mais lentas que de costume, teve que se conformar com a outra metade de seu corpo ter se tornado inútil. Era como sair de um inferno e entrar em outro. No começo se revoltou com a falta de coordenação e por não se adaptar à nova vida 'engessada'. Dessa vez ele tinha motivos para reclamar, mas não teve forças para isso.

Algum tempo depois seus movimentos foram retornando. Pouco, mas era quase um milagre, uma vez que os médicos disseram que ficaria naquele estado até o fim de seus dias. Seu rosto já não assustava tanto assim e de pouco em pouco, conseguia fazer coisinhas que há alguns dias não era capaz. Se ‘virava’ como podia. Com seu pouco dinheiro, contratou uma moça para cuidar dele e acompanhá-lo ao médico toda vez que precisava ir. Por se afeiçoar ao tal homem e saber que o dinheiro lhe faltava, disse que ficaria e cuidaria dele, em troca apenas de um lugar para dormir. Ele não concordou, mas depois de ela ameaçar sair de lá se não aceitasse a condição, ele baixou a cabeça com um leve sorriso de lado. Ele, que nem se lembrava mais como era sorrir, pela primeira vez soube como era ter alguém pensando em seu bem-estar.

O tempo foi passando, as sequelas não. Não recuperou os movimentos 100%, mas o contato com sua família sim. A jovem que o ajudara tanto cuidando dele, fez questão de ajudá-lo nisso também. Eles mal o reconheciam com tantas mudanças. Parecia realmente outra pessoa. A moça não ficou por muito tempo, percebeu que o amor e carinho haviam voltado entre aquelas pessoas e sentiu ar de 'missão cumprida'. De certa forma, sempre achou que precisava fazer algo por aquele homem, mas não sabia bem o quê.
Ao se despedir, agradeceu por todo ensinamento de vida que o Sr. Ferdinando lhe passara...

Após dois anos, tudo para ele ainda era muito limitado. A parte direita do seu corpo era mais rígida que a esquerda. Sentia dificuldade com isso, mas nunca mais reclamou. Pelo contrário. O Sr Ferdinando saía para as ruas todos os dias com sua bengala, andava calmamente e sempre com um sorrisinho de lado. Sentava no banco da praça da cidade e ficava algumas horas por lá, só vendo o tempo passar. Cumprimentava todos que cruzavam seu caminho. Era como se conhecesse a cidade inteira e, o mais interessante, é que as pessoas de lá pareciam muito satisfeitas só de vê-lo ali sentadinho todos os dias.

Hoje, ele garante que o mal foi para o seu bem. Só assim conseguiu perceber que ser feliz e emitir felicidade eram um dos melhores gostos que a vida poderia trazer.


Leia também: 

“Sorria, mesmo que seja um sorriso triste”

Cotidiano Mutilado  

Comentários

  1. Ow, dona Laíla... vamos parar com a humilhação?!

    HAHAHAHAHA

    Muito bom o texto, a história, tudo!

    E vê se me manda um pouquinho dessa inspiração, pq eu tô precisando!

    =P

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    1. Hahaha
      Boba!!! Vc tem ótimas histórias também! Seeempre muito boas! A inspiração chegará em breve, vc vai ver... Na rua ou em qualquer outro lugar! =D

      Bjsssss, obrigada pelo comentáááriooo *-*

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  2. Parabéns, Laila! Solte-se com as palavras e elas falarão por você. Muito bom! Viegas

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    1. Obrigada Viegas!!!
      Fiquei feliz em receber seu comentário aqui :D

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